Crítica: a primeira temporada de “American Crime Story” é memorável em vários aspectos



Foi encerrada na última semana a primeira temporada de American Crime Story. A série da FX tem em seu DNA uma estrutura antológica, o que fará com que cada temporada tenha um assunto, sem ligações narrativas lineares entre si. Disposta a tratar de crimes que mexeram com os norte-americanos, a estreia falou sobre o julgamento de O.J. Simpson (Cuba Gooding Jr.).

Em 1995, Orenthal James Simpson foi acusado de cometer homicídio doloso. As vítimas teriam sido sua ex-esposa, Nicole Brown (Kelly Dowdle), e o então atual marido dela, Ron Goldman (Jake Koeppl). O.J. era um famoso jogador de futebol americano e aclamado por toda população e a série criada por Scott Alexander e Larry Karaszewski teve o difícil papel de colocar em dez episódios o embate entre promotoria e defesa que se prolongou por quase um ano.

O seriado acerta de diversas maneiras e um dos primeiros pontos a se destacar é a direção. Dividida entre três nomes (Anthony Hemingway, Ryan Murphy - o primeiro também é co-produtor executivo, enquanto o último atua como produtor executivo - e John Singleton), ACS alterna perfeitamente entre os planos fechados, abertos e americanos, enquanto conversa com o estilo de direção dos anos 90, mas sem perder a veia contemporânea de suas câmeras e ângulos. Isso tudo é reforçado por um trabalho impecável de fotografia, cenografia e figurino, que cerca o tom proposto.

Para fechar um círculo perfeito, o seriado conta com uma dupla imbatível quando consegue andar juntas: atuações extremamente convincentes e roteiro certeiro. Por se tratar de algo diretamente inspirado em eventos reais, os atores poderiam desaparecer no meio de seus personagens ou não entregar uma semelhança esperada dos protagonistas que estrelaram o fato de 1995. A linha narrativa anda de mãos dadas com o modo que cada cena é entendida por completo pelos atores - mesmo aqueles que aparecem rapidamente, como a esposa (Carolyn Crotty) do Juiz Lance Ito (Kenneth Choi), ou os que são apresentados rapidamente e depois ganham destaque, como o detetive racista Mark Fuhrman (Steven Pasquale).



No panteão dos protagonistas, John Travolta entende a importância do papel de Robet Shapiro, o advogado principal de O.J. que gradativamente desaparece no meio do circo que a defesa de Simpson cria para o caso do réu. David Schwimmer mostra em nuances de olhares e desconforto físico a dúvida crescente de Robert Kardashian, amigo e advogado do acusado. Os ataques de fúria e descontrole emocional deste também ganham espaço no emaranhado de emoções a flor da pele que envolvem todos os personagens. É verdade que O.J. pode sumir um pouco, mas tudo isso vem acompanhado de um maior espaço para Sarah Paulson e Courtney B. Vance.

Ela interpreta a promotora Marcia Clark e ele faz as vezes de Johnnie Cochran, um dos advogados do chamado "Dream Team", os profissionais que defendiam o jogador. Sarah brilha quase espontaneamente em seu papel e mostra a força necessária para ser a única mulher ativamente envolvida no julgamento. O roteiro contribui para isso, principalmente quando dedica um episódio praticamente inteiro sobre a promotora, mas poderia ter mostrado mais os aspectos sexistas que rondam todas as mulheres. Felizmente, Paulson consegue chamar atenção para isso com sua atuação bem estudada e sem medo de se expor.

Fazendo o par de personagens mais bem trabalhados, Johnnie Cochran atua perfeitamente como um antagonista aos discursos propagados inicialmente pela série. Isso aparece tanto quando comparamos sua atuação frente à promotoria quanto a alguns dos colegas de seu time, principalmente Shapiro. Cochran, então, consegue crescer dentro do tribunal ao ser chamado para dialogar com o possível júri, que tinha altas chances de ser composto por muitas pessoas negras. É aí que o maior trunfo da série se insere: as discussões sobre racismo.

Tudo isso é instaurado desde o primeiro episódio. Nele temos um vislumbre inicial de como o preconceito ronda as relações pessoais dos norte-americanos e da população negra com a polícia da Califórnia, principalmente de Los Angeles, onde se situa o seriado. Durante todo o desenrolar do caso, vários questionamentos aparecem para os personagens e saltam para a audiência: é possível descolar o contexto racial de alguma discussão, principalmente em um julgamento de um homem negro? Até que ponto as contradições criadas tanto por defesa e acusação interferem na ética pessoal de um profissional jurídico? A questão racial, que tem que ser discutida sempre, livrou um homem culpado de matar duas pessoas? O caso d'O Povo vs O.J. Simpson conseguiu levantar seriamente discussões sobre o racismo norte-americano? É aceitável que a sociedade do espetáculo se junte ao racismo estrutural para isentar suas celebridades olimpianas de qualquer culpa?

Talvez pelas mãos de Ryan Murphy, a série ainda incluiu algumas ironias sobre o que é ser uma celebridade, ter fama e sucesso. Tudo isso feito pela inserção de Faye Resnick (Connie Britton), uma amiga da vítima Nicole Brown, e das pequenas Kardashians - juntamente com sua mãe Kris Jenner (Selma Blair) - que hoje compõe uma das famílias mais famosas do show business. A série também não esquece de endereçar o fato de que o crime cometido mostrou forte ligação com violência doméstica, citando diversas vezes em que O.J. maltratou sua ex-esposa sem pudor na frente de outras pessoas e também em sua privacidade. Contudo, esse aspecto poderia ter sido ainda mais trabalhado pelos roteiristas durante todo os dez episódios e não se concentrado apenas na segunda metade da temporada.

Antes mesmo do final de uma incrível primeira temporada, a segunda já foi encomendada pelo canal. O segundo ano de American Crime Story falará sobre o Furacão Katrina. A justificativa dos criadores é que as ações posteriores a este fato podem ser consideradas um crime do governo contra a sociedade norte-americana. Se conseguirem tratar de temas sempre tão atuais e questionar condutas humanas como fizeram com estes dez episódios estreantes, podemos esperar algo grandioso da segunda temporada.

American Crime Story: The People vs O.J. Simpson vem para atualizar ainda mais as discussões sobre o racismo estrutural estadunidense e faz isso com uma maestria invejável. A série também serve de material aplicável na realidade de tantos outros países, seja pela conduta policial que atua de modo truculento sob alguns indivíduos ou pelos enquadramentos hegemonicamente permitidos para as minorias, neste caso as pessoas negras e também as mulheres. É de aplaudir de pé.



P.S.: parabéns à equipe da InSUBs, responsável pelas legendas não oficiais, que incluiu um disque-denúncia para violência doméstica ao final do season finale.
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