Crítica: “Marvel’s Luke Cage” usa o contexto social para acertar em seu realismo



Luke Cage é o novo herói da Marvel a chegar na Netflix. Depois de duas temporadas de Demolidor e uma de Jessica Jones, o serviço de streaming nos presenteia com uma história focada em si mesma e que não tem dificuldades em atingir seu público.

Luke (Mike Colter) é um rapaz com pele à prova de balas que de dia trabalha varrendo a barbearia de Pop (Frankie Faison) e à noite é lavador de pratos na Harlem Paradise, boate de Cornell "Boca de Algodão" Stokes (Mahershala Ali). Ele leva essa vida tranquila para conseguir pagar seu aluguel e tirar da cabeça seu passado como ex-detento da prisão Seagate, lugar em que ganhou seus poderes.

Desde o primeiro episódio a série acerta ao explorar o Harlem e seus cidadãos como base indispensável para a narrativa que quer contar. O bairro é um dos exponentes da cultura negra em Nova York e vemos isso em toda concepção dos personagens e cenografia. A direção, que homenageia diretamente filmes dos anos 70/80, ainda contribui para essa ambientação. Com ela vem também a iluminação característica - principalmente nos lugares fechados como a boate dos vilões - e, por que não, os figurinos de personagens coadjuvantes.

É por esse trabalho tão exímio na definição de seu ambiente que Marvel's Luke Cage consegue se destacar sem dificuldades. O protagonista é retratado primeiramente como alguém do bairro, uma pessoa que entende o senso de comunidade presente no espaço e deseja contribuir para o bem-estar daquela população. Esse trunfo descola Cage de histórias megalomaníacas de super-heróis e finca seu pé em um realismo bem recortado de uma realidade que não é distante de alguns novaiorquinos.



Sem exigir muito da audiência, o roteiro encaixa confortavelmente seus personagens, graças também à atuações maravilhosas. A partir de uma relação conflituosa entre as gangues do Harlem, somos levados a conhecer as motivações de cada ser. Não é algo externo que coloca a história em movimento, mas justamente suas vidas entrelaçadas e produto de um contexto social e racial que empurram o texto para frente. A partir disso conhecemos pouco a pouco as motivações de Boca de Algodão e, paralelamente, de sua prima Mariah Dillard (Alfre Woodard). São as escolhas deles que se interconectam com a vida daqueles personagens de jovens negros que fazem parte do crime organizado por motivos que conhecemos com o desenrolar dos episódios. É a partir disso e da ameaça constante ao povo de Harlem que Luke Cage se envolve.

Tecnicamente, quanto ao ritmo empregado, a primeira metade da temporada funciona tão bem quanto a segunda, mas não sem antes escorregar na mudança de uma narrativa para outra. A inserção de Kid Cascavel (Erik LaRay Harvey), por mais que o nome tenha sido citado antes, parece blocada demais e demora um pouco para se fazer tão fluida quanto a interação entre Cornell, Mariah, Luke e também a detetive Misty Knight (Simone Missick). Além disso, esse vilão, que é a ameaça principal da metade da temporada para frente, faz a história cair em arquétipos ficcionais que são constantemente revisitados. Ao menos isso ganha um pouco de brilho com a analogia religiosa feita pelo personagem. Ela, porém, só para de soar brega quando conhecemos o passado de Kid Cascavel, mas mesmo assim coloca o seriado, por vezes, em um lugar comum demais.

Felizmente, a criação de Cheo Hodari Coker não esquece que seus personagens coadjuvantes são tão interessantes quanto os principais. Bobby Fish (Ron Cephas Jones) que se torna o novo dono da barbearia mais famosa do bairro, a inspetora Priscilla (Karen Pittman) do Departamento de Polícia de Nova York, o capanga Shades (Theo Rossi) e a funcionária Candace (Deborah Ayorinde) da Harlem Paradise são alguns que contribuem para manter a malha definida no começo da temporada. Contudo, as que mais se destacam, ainda por motivos de envolvimento direto com Luke Cage, são a enfermeira Claire Temple (Rosario Dawson) e a detetive Misty Knight. As duas mulheres são fortes em suas convicções e sempre trazem um pouco mais do que significa viver no Harlem.

É esse último ponto, a vida das pessoas negras do bairro, que mais ganha destaque na produção. Em meio a easter eggs da HQ de origem, a série sabe de sua importância social e deixa isso bem claro. Diversas vezes essa questão é retratada sem metáforas. Personagens falam como é relevante existir um herói negro. A cultura negra, retratada tantas vezes pelas canções nos episódios, é algo sempre celebrada. Mesmo que com menos força, outras questões atuais são retratadas também. A violência policial frente à população negra, por exemplo, poderia ter sido tratada de forma mais direta e pesada, mas só por aparecer já é um ponto a mais.

Em grandes ou pequenas sequências, em cenas importantes ou de transição, o racismo faz parte de todo os arcos apresentados pelo seriado e fica ainda mais evidente no terceiro ato da temporada. Impossível não se emocionar quando os policiais procuram Cage pelas ruas e a população começa a usar capuz preto com furos como forma de proteger o herói e demonstrar apoio. A comunidade negra é um espaço social tomado de união por agrupar indivíduos que entendem como é duro o peso do preconceito que essas pessoas sofrem diariamente.

A inteligência de Marvel's Luke Cage está em entender completamente seu personagem. Esquecendo os superpoderes por um momento, ao retratar um homem negro pobre, a série busca o contexto para construir toda a psiqué do protagonista e a amarra com seu passado. Tudo isso faz com que ele se torne um símbolo para o Harlem e, consequentemente, para a audiência que o assiste. Em um dos cameos famosos do seriado, Method Man aparece em um programa de rádio para nos alertar: "Ser à prova de balas sempre vai vir depois de ser negro". Esse é o ponto-chave: Cage não é retratado como uma figura mítica, mas sim como ícone de luta de uma população que resiste há anos. Já era tempo.


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