Crítica: em “Joanne” conhecemos uma Lady Gaga que nunca esteve longe de nós



Com o objetivo de atingir mais pessoas somente por meio de sua música, Lady Gaga nos apresenta Joanne. O álbum age de forma clara, desde sua capa: ele deixa de lado as complicações da cantora, tanto nos looks quanto em suas mensagens, ambos cheios de significados intricados demais para quem não acompanhava de perto seu trabalho. Contudo, é um erro pensar que o contrário do exótico de Gaga é o simplório. Nada em Joanne é simples e até mesmo canções com tons acústicos estão ali para contar mais sobre ela como artista.

Tudo começa, muito bem por sinal, com "Diamond Heart". Com uma introdução calma que logo se transforma em uma música com ares de rock do início dos anos 90, os primeiros versos falam acerca de quem é esse álbum. É sobre a garota que aos 19 anos saiu da faculdade para ir cantar em bares, não teve o apoio dos pais e conseguiu fazer o que queria mesmo que tenha sofrido no decorrer. Pode soar um pouco ensaiado, mas nem por isso é menos relacional e sincero.

Ao seguirmos para "A-Yo", continuamos no rock, mas também somos apresentados ao country, um dos gêneros que percorre o disco. Uma inspiração hillbilly up-tempo com distorções divertidas na guitarra colocam a música como um dos destaques do registro. A letra leve recorre às repetições pop e traz a certeza que Lady Gaga não morreu e foi substituída. Essa primeira dupla de canções, que quebra um pouco a sonoridade uma da outra, nos aponta que o álbum não se fecha tanto em gêneros.



Claro, existe uma linha melódica coesa durante todo o long play, o que só confirma a obviedade do rock oitentista com toques leves de psicodelia dance de "Perfect Illusion" ter sido o primeiro single, mas isso não nos priva de surpresas muito bem-vindas. É o caso de "Dancin' In Circles", que exige um pouco da nossa imaginação para fazer Beck se encaixar nessa produção de Mark Ronson. A canção fala sem meias palavras sobre masturbação com uma pegada funky up-tempo em um mix de música dos trópicos com um refrão cantado no que talvez seja a voz mais pop mainstream que Gaga faz em todo o Joanne.

"John Wayne" também acaba entrando nesse contexto de boas surpresas quando elementos claramente eletrônicos aparecem em destaque nessa ode à relações intensas, perigosas e inconsequentes. O mesmo para a divertida "Just Another Day", que arregala nossos olhos basicamente por ser o equivalente musical à uma sitcom novaiorquina do final dos anos 80 protagonizada por um starman.

Até "Hey Girl" surpreende, mas não de uma maneira extremamente positiva. Um dos pontos menos impressionantes do álbum, a colaboração com Florence Welch parece muito aquém do que essas duas vozes juntas poderiam fazer. Os sintetizadores dos anos 80 são bons, mas podem demorar para hipnotizar quem ouve por terem basicamente um único hook e ascenderem pouquíssimo em sua melodia. Entretanto, o sentimento de sororidade que a letra passa é inegável e por isso a música ainda se destaca.

Do lado das sonoridades esperadas, principalmente depois da divulgação de "Million Reasons" como single promocional, temos o old country de "Sinner's Prayer". Com as notas pesadas e mão de Father John Misty, a canção é acompanhada de um tom mais aberto na voz de Gaga e notas altas que aparecem mais para o final. Isso, inclusive, é uma constante interessante nesse álbum, que tem uma modulação vocal pura e muito bem trabalhada. Contudo não é exatamente o som country que tem mais força aqui, mas sim a sensação que ele passa.

Conseguimos sentir isso em "Grigio Girls", com sua ambientação criada com poucos instrumentos. A canção volta ao cenário cantado na música que abre o registro, o do bar, o mesmo ambiente em que a cantora escolheu para começar a divulgação do novo material com a Dive Bar Tour. É a aura criada a partir da escrita dos seus sentimentos de forma sincera que aproxima esse álbum de um lirismo reflexivo, não por ter significados ocultos, mas por nos convidar a conhecer um pouco mais de Gaga sem tanta coisa no meio do caminho.

Claro, às vezes isso não funciona tão bem, como em "Come To Mama". Podemos defini-la como "uma música com uma mensagem", no melhor e pior sentido da expressão. Ficamos com a sensação de que Gaga sentiu a necessidade de dar um conselho para o mundo, o que é ótimo, mas no meio do caminho ela toca em clichês como "The only prisons that exist are ones we put each other in". Em "Angel Down", no entanto, ela tenta instaurar uma reflexão sobre o contexto político em que estamos e consegue fazê-lo. Aliás, é corajoso terminar a versão standard com um tema pesado e passado de maneira tão soturna (o que ficaria mais ameno se a versão work tape tivesse ganhado seu lugar).

Mais bem-vindo teria sido terminar essa jornada com a música homônima. "Joanne" fica extremamente blocada como terceira faixa e no meio de duas tracks up-tempos. A balada stripped deveria ter recebido o posto de música conclusiva. Assim sua sinceridade dócil que vem de um coração machucado pelo luto poderia ecoar por mais tempo em nossos ouvidos e nos fazer entender que Gaga realmente nunca foi um personagem.

A cantora sempre disse que sua vida era uma peça de teatro e que sua persona famosa não era uma interpretação. Em Joanne isso não cai por terra, já que o que temos aqui é somente a história não-contada dessa pessoa que vive para sua arte, arte essa que muitas vezes vem de lugares cheios de dor e medo. A única diferença é que, desta vez, ela preferiu que suas metáforas não fossem megalomaníacas e isso é um acerto. Assim como sua tia que dá nome ao registro, podemos pensar que Joanne é um álbum que sempre esteve com Gaga, mas só agora ela se sentiu confortável para cantá-lo.


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