Crítica: 3ª temporada de “Black Mirror” deixa a série um pouco diluída



Criada em 2011, Black Mirror é uma daquelas séries que não precisam de muito para ser ovacionada. Mesmo assim, o seriado, uma antologia sobre a tecnologia, não se tornou um sucesso desde sua elaboração. Aliás, foi somente em meados de 2015, dois anos após o encerramento da segunda temporada, que sua difusão ganhou peso.

Então, depois de 7 episódios (um deles um epopeico especial de Natal) transmitidos pela Channel 4, emissora britânica, entre 2011 e 2014, a série de Charlie Brooker caiu nas graças da Netflix. Com o dobro de material do que suas predecessoras, a terceira temporada de Black Mirror testa o costume do binge watching dos usuários do serviço de streaming e faz isso com episódios consistentes/inquietantes. Entretanto, dessa vez tudo parece mais diluído e não podemos deixar de pensar em como os meios comunicacionais ditam maneiras de transmitir suas mensagens para um público presumido.

Em "Nosedive", história que abre a temporada, Lacie (Bryce Dallas Howard) vive em uma sociedade em que os likes são extremamente importantes. São eles que definem o status social e pessoas abaixo de uma classificação 2,5 são párias. Aqui, o roteiro de Brooker faz o que ele sabe fazer de melhor: extrapola um aspecto atual tecnológico e o trabalha de maneira suprarreal, de modo a nos fazer pensar sobre atos contemporâneos e refletir como a tecnologia nos deixa em um mundo de conceitos esvaziados de significação. Tudo fica ainda mais irônico e profundo quando percebemos que a paleta do episódio é toda baseada nas cores Rose Quartz e Serenity, as duas colorações do ano da Pantone que juntas significam o equilíbrio da serenidade.



Algo parecido é explorado em "Playtest", o segundo episódio, em que um jogo de realidade virtual resume muito bem o questionamento de diversas pessoas: será que estamos preparados para uma imersão irreal apenas como forma de entretenimento? O resultado sinistro da versão de testes que Cooper (Wyatt Russell) experimenta deixa aquela dúvida de que talvez nem a população nem mesmo as empresas tenham consciência do poder da realidade virtual.

É a partir de "Shut Up And Dance", terceiro episódio, que a série começa a mostrar sinais de porosidade quanto às discussões de tecnologia. A narrativa do jovem Kenny (Alex Lawther) discute muito mais as decisões do indivíduo perante à sociedade do que fala sobre os dispositivos tecnológicos. Essa questão fica muito óbvia e a série tenta nos levar um pouco mais afundo na psiqué de seus personagens, mas como deseja manter ares de mistério, acaba se perdendo um pouco no caminho e chega numa conclusão geral até esperada, o que não é comum para a criação de Charlie Brooker. É nesse ponto que começamos a perceber que os conflitos talvez tenham ficado mais diluídos. Pela primeira vez, temos a sensação de que Black Mirror não quis falar tanto de tecnologia para justamente não assustar seus espectadores.

Claro, ao fazer isso, o seriado não se perde e ganha ainda mais textura no campo antropológico/social, coisa que traz desde a primeira temporada. O problema é que são usados mecanismos de roteiro ou até mesmo temas narrativos que aproximam essa criação de um lugar mais comum e palatável. O season finale, "Hated In The Nation", insere discussões incrivelmente atuais sobre o ódio na internet e como ele é impensado. Entretanto, toda a grandiosa minutagem poderia fazer parte de alguma série procedural sobre crimes cibernéticos de 40 minutos sem nenhum esforço. O mesmo podemos dizer do quinto episódio, "Men Against Fire", que nos leva para um microuniverso militar para alertar sobre a reconfiguração do mundo por meio da violência. Aqui, ainda somos agraciados por um diálogo que explica tudo para o público para se certificar de que a problemática foi entendida, um recurso bem aquém do que esperamos de Brooker como roteirista.

No meio desses deslizes, a terceira temporada nos traz uma pérola de sensibilidade sem deixar de tocar em uma das maiores dificuldades sociais que enfrentamos: a aceitação da morte. No que muitos consideram um final feliz (mas que só pode ser pensado assim se colocarmos uma grande interrogação nessa afirmativa), "San Junipero", estrelado pelas incríveis Gugu Mbatha-Raw e Mackenzie Davis, é uma catarse de todos os cuidados narrativos que Black Mirror tem. Conseguimos elogiar cada aspecto do quarto episódio: a cenografia, os figurinos, a fotografia, o design de produção. É tudo tão bem pensado que vemos o quanto a equipe se dedicou para criar aquela noção de paraíso. Essa construção contribui enormemente para a percepção de que, provavelmente, o amor só pode ser perfeito em um mundo idealizado. E mais: talvez não conseguimos julgar quem prefere viver nessa realidade porque também escolheríamos o mesmo.

Depois de seis episódios, uns mais trabalhados e focados que os outros, a terceira temporada de Black Mirror entrega o que sempre se propôs a fazer, mesmo que escolha, às vezes, não tratar dos seus temas de uma forma tão esmagadora. Isso acaba por deixar a série um pouco mais porosa e faz emergir questionamentos de outras instâncias. Não podemos negar que essa escolha traz certo dinamismo à produção, mas como consequência parece que o brilho que Charlie Brooker lustrava com extremo cuidado começa a ficar um pouco fosco.


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