
Não conseguimos ser ninguém sem nossos papéis sociais. Não é necessário estudar psicologia, comunicação ou quaisquer ciências humanas aplicáveis para entender o conceito de teatralidade que carregamos conosco durante toda a vida. Ninguém é um ser fechado. Dizemos isso sem teorias atadas a esse pensamento, mas pela cotidianalidade vivenciada por todos nós. Como tantos papéis que escolhemos ou temos que atuar - amigo, namorado, escritor - mãe é mais um dentro desse pacote.
Kim Kardashian apareceu na capa dupla da publicação Paper com a chamada "Break the internet". Em uma das capas, a mulher escolheu estampar sua bunda para todos verem. Assim mesmo. Nua, crua e com óleo. Existe um número infinito de leituras que podem ser feitas a partir da imagem. Uma que escolheram fazer foi: mãe. Agora é o momento que colocamos a mão nas nossas cabeças, respiramos por quatro segundos e perguntamos: sério?
Por que uma bunda tem a capacidade de desqualificar qualquer papel social de Kim Kardashian? Suponhamos que ela fosse uma empresária (inclusive, sim, ela é). Com a bunda estampada, ela deixou de ser menos profissional? Suponhamos que ela fosse uma irmã (inclusive, sim, ela é). Com a bunda à mostra, ela não serve mais para esse papel fraterno? Suponhamos que ela fosse mãe (inclusive, SIM, ela é). Com a bunda escancarada, ela anulou qualquer ação supostamente esperada de uma "matriarca"?
A complicação começa aí. Mesmo quando não estamos reproduzindo qualquer um de nossos papéis sociais, não deixamos de sê-los. Por exemplo, você não deixa de ser universitário porque está em uma festa de família. A questão é que, naquele momento, você não está atuando como um universitário. Essa é a diferença. Na capa da Paper, Kim não está atuando como mãe e sua bunda, em nenhuma instância, interfere nesse seu papel. "Ah, mas imagina quando a North West ver essas fotos. O que ela vai pensar?". Bem, midiatizamos tanto as celebridades, que por vezes nos projetamos nelas e, por outras, nos fazemos aproximar. Existe toda uma complexificação entre público e privado que não nos cabe discutir agora, mas o que nos importa neste momento é: o que North West irá pensar interessa à família dela.
A maternidade, inclusive, nem sempre foi essa coisa linda que comerciais de margarina te mostram dia após dia. Mães eram as mulheres que geriam. Cuidado e atenção eram delegados às amas. Até mesmo nossa relação atual com as crianças mudou. Houve um tempo, em que elas eram consideradas apenas pequenos adultos e tratadas como tal. Sentimos muito informar, mas a infância como época lúdica em que há nada além de brincadeiras, diversão e construção de caráter é uma invenção social. O mesmo com esse conceito de maternidade tão enraizada, que julga e exclui mulheres que decidem não ser mãe ou não serem mães enquadradas em padrões pré-estabelecidos.
Voltando para Kim e indo um pouco mais à frente, percebemos que quando a Kardashian é fotografada por paparazzi, seja em que situação estiver, o questionamento quanto à sua maternidade não entra em foco. Ela pode estar incutindo fashionismo em cada ato seu, sendo egocêntrica na gravação de mais um episódio de Keeping Up With The Kardashians e N outros pequenos acontecimentos. No entanto, não é curioso que seu papel de mãe veio a ser debatido quando ela, quanto mulher, escolhe expor sua bunda (quando atribui seu senso de moda na filha isso também entra em questão, mas não como agora)? Bunda linda, enorme e photoshopada. Bunda de propriedade dela e só dela - mesmo que Kanye, ironicamente ou não, reclame sua posse vez ou outra. Uma bunda que milhões enxergam como metonímia para a pessoa-Kim-Kardashian e que a própria decide por evidenciá-la na imagem.
É como se fôssemos regidos por trocentos contratos sociais e cada um deles impusesse uma linha limite para nossos atos. Os meios midiáticos podem sexualizar jornalistas, esportistas e meninas de catorze anos. Os paparazzi podem ir atrás de fotos de sexo oral, brigas de família e casamentos. Desde que a exposição seja feita por terceiros, é só um flagrante, é só um pedaço do privado escapando para o público. Quando você decide levar seu corpo à uma publicação e expô-lo dentro de suas regras e escolhas, você passou do limite. Já o outro você passou do limite quando tentou diminuir Kim-mãe quando Kim-qualquer-que-seja-o-papel-representado quis expor a bunda.
É necessário olhar tanto para os limites que nos são forçados, quanto para os atos que os quebram. Tudo é passível de discussão e, desculpem-nos os preguiçosos (eufemismo as its finest), tudo tem sua capacidade de problematização. Se permitam olhar os assuntos de frente, de lado e por trás. Numa dessas, pode ter outra poderosa foto de Kim Kardashian te esperando.
quedelicianegente.com
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